Falta ainda um bocado pra gente poder viver num mundo mais generoso, compassivo de verdade, com respeito, bondade, sabedoria e liberdade. Mas é também verdade que nas últimas décadas demos passos largos em conscientizações diversas.
Certamente não somos cruéis por opção consciente, quando dizemos aos outros, por exemplo, como eles devem ou não se comportar, como devem fazer, dizer, vestir, etc… Sutilmente estamos dando conselhos revestidos de enquadramentos. E isso é mais constante e cruel no universo do feminino, infelizmente.
Certa vez cheguei na casa de uma amiga, ela tinha feito um aplique, estava ótimo, combinava com ela. No dia seguinte, tínhamos um evento e ela estava com todo aquele cabelo preso, quase que de modo evangélico, até me assustei. Ela permaneceu com ele assim, preso, e depois acabou contando que outra amiga tinha dito que achava que pela idade (na época pouco mais de 40!), não ficava bem. Uma opinião, e não foi só o cabelo que se “fechou”, mas o corpo dela estava todo contraído.
A gente já passou do “lugar de mulher é na cozinha”, ocupamos outros espaços na sociedade. Só que ainda nos colocam em caixas, ou tentam nos calar, de modo bemmm mais sutil… e pior, pelas próprias mulheres muitas vezes. Não estou falando das críticas escancaradas sobre corpos, etarismo, modos, etc, mas daquilo que é tão sutil que nos custa a notar. Eu mesma, me reconheço tendo já ocupado este lugar do “bom” conselho para a amiga, porque enquanto estamos querendo caber ou estamos “encaixotadas” sem reconhecer, não temos como agir no mundo de outra maneira.
Desconfie de frases ditatoriais e limitantes, como: “pensa menos, sinta mais (não ocupe o lugar racional do homem)”, “fique quieta”, “seja discreta”, “fale baixo”, “você é legal quando faz isso (não outra coisa)”, “a gente já sabe onde você quer chegar” (cale a boca), “você quer aparecer”, “tem que fazer, assim e assado”, “você está sendo irresponsável”, “eu sei, me escuta, você não sabe”, “pessoas como você, deveriam agir de tal forma”, “não fique com raiva”, “você precisa fazer tal coisa”, “você não vai sair comigo assim, vamos arrumar esse cabelo/essa roupa” e por aí vai…
Pode parecer que estamos protegendo umas às outras, só que não! Em boa parte das vezes, é ordem e dominância e não afeto. E é bem provável que haja por baixo disso uma culpa inconsciente, por não se “enquadrar/encaixar” também em algum aspecto, e consequentemente vai fazer isso com outras pessoas. É uma questão enraizada, cultural, difícil de ser notada e trazida à luz, por isso a temos e a reproduzimos, perpetuando-a de modos diversos.
Sutil e devastador…
E para tentar “caber”, quem lucrará sempre é o capitalismo: os que vão fazer cursos sem fim, comprar modinhas sem fim, querer se informar sem fim e cair em todo tipo de persuasão, ser violentos com seus corpos/psique. E no fim, restará a felicidade por anos para a indústria farmacêutica… porque a gente já sabe onde isso termina… em alguma medicação para não surtar, enquanto estreitam a tua mente sem que você se quer note… Se você acabou de notar isso agora, calma, não jogue ira contra a amiga (o), pai/mãe, companheiro(a) que pode estar agindo SIM por boa intenção, não é pessoal, nem ela/ele sabe, é ação do sistema mesmo, sendo sorrateiro como sempre. Se pudesse ser compassivo consigo, o jogo mudaria.
E compreenda que o problema não é você comprar, adquirir ou buscar conhecimento. O problema é o “sem fim”. O problema é não reconhecer o que é mais importante em você, que não depende em nada em ser melhorado. O problema não é buscar o que quer que seja para se adequar ao que é solicitado, é ver seriedade nisso, é crer nisso como maior que você ou qualquer pessoa.
Na verdade, precisamos compreender como tudo isso funciona de forma ampla, não de modo pessoal nem individual, pra ter escolha em como agir. Se estamos em processos compassivos/afetivos, também podemos perceber isso bem mais facilmente. Mas enquanto isso, podemos parar ante a ditar regras uns aos outros, umas às outras. Rever no que acreditamos daquilo que ouvimos como limitação de potencial. Elogiar sem manobras e apoiar. Ter menos opinião formada sobre “deve/não deve”. E principalmente, ficar atenta para não se submeter a entrar na caixinha do “olha, entra e fica aqui quietinha tá?!”
Milene C. Siqueira